Quantcast
Channel: Caótico » Luís Carlos Prestes
Viewing all articles
Browse latest Browse all 2

Vale a pena sonhar

$
0
0

ApolonioApolonio de Carvalho carregava e distribuía lotes de esperança sem prazo de validade. Aos 85 anos, no quintal da Pernambooks, uma livraria que existiu durante pouco tempo na Ilha do Leite, ele me garantiu que fazia planos para os próximos 30 anos de vida.

Um dos projetos mais imediatos era, já no início do ano seguinte, 1998, fazer vestibular e cursar Psicologia: o velho revolucionário queria entender os afetos, as subjetividades, as emoções, enfim, esses detalhes insignificantes que a esquerda sempre fez questão de ignorar. Ou de classificar como “desvios pequeno-burgueses”.

Ao ler 15 anos depois Vale a pena sonhar, o livro de capa vermelha que Apolonio me deu de presente naquela tarde, compreendi melhor porque ele desejava, mesmo octogenário, voltar à sala de aula.

Quando ainda estava se aproximando do PCB, escutou a proposta de entrar nas brigadas internacionais que reforçavam o precário exército da república espanhola na guerra civil contra os fascistas de Franco. Ele topou a parada, mas queria despedir-se da mãe e do pai idosos que viviam no Mato Grosso. O “partido” não deixou. Não dava tempo. Três dias depois, Apolonio partiu para a Espanha como clandestino num navio.

Àquela altura, ele era um ex-tenente do Exército. Sua patente havia sido cassada em 1936, pouco depois do desastrado golpe militar que os comunistas liderados por Luís Carlos Prestes tentaram em 1935 e, do qual Apolonio sequer participou.

Na Espanha, lutou até o fim da guerra. Comandou baterias de artilharia, chegou a ocupar um posto equivalente ao de coronel. Conseguiu entrar na França com milhares de refugiados. Após a invasão alemã e a rendição dos franceses, permaneceu alguns meses em Marselha, trabalhando no consulado brasileiro como voluntário e arrumando vistos para facilitar a vida de outros brigadistas internacionais.

Não demorou para articular-se à hoje lendária Resistência Francesa.

Na época em que o conheci, fiquei surpreso quando ele me contou que era o único brasileiro a ter a patente de tenente-coronel do Exército francês. A explicação é simples: Apolonio não entrou na Resistência para fazer graça. O homem planejou a explosão de um presídio para libertar vinte e tantos presos, destruiu um quartel de tropas italianas e chegou a comandar todas as ações de guerrilha de uma região no sul do país. Para a França, era um herói de guerra como nenhum dos marechais brasileiros jamais conseguiu ser.

Anos depois, quando a esquerda brasileira descambou para a luta armada, o mais experiente dos militantes nesse tipo de coisa, tentou defender a aposta no movimento de massas. Não foi ouvido e acabou embarcando numa tática na qual não acreditava.

Apolonio (1)Chamo a atenção para um detalhe que causa estranheza na cultura individualista do século XXI. Aos trinta anos, sua maior preocupação era sempre colocar sua vida, seus dias, sua inteligência e sua coragem à disposição de tarefas ou atividades que pudessem influenciar a luta contra as injustiças. Ou pelo menos para ajudar alguém.

Ao fugir do campo de refugiados no sul da França e conquistar a confiança dos diplomatas brasileiros em Marselha, sua primeira preocupação é tornar sua vida mais útil no combate aos nazistas. É difícil ou estranho compreender isso. Para o homem contemporâneo, o normal seria arrumar uma forma de ganhar dinheiro para sobreviver, escapar para o Brasil no primeiro navio ou até mesmo enriquecer vendendo vistos, por exemplo.

Mesmo não sendo um escritor com vastos recursos literários ou mesmo uma prosa instigante – seus feitos na resistência contra os nazistas, por exemplo, são contados de maneira modesta, sem recorrer ao ritmo de aventura ou de ação – Apolonio é capaz de seduzir por outras características de sua prosa. Ele é sincero e elegante.

E sua sinceridade torna profundas as análises dos erros e caminhos tomados por ele mesmo ou pelas organizações das quais participou. Seu compromisso com a democracia interna e a inadequação com os dogmáticos chega a ser comovente.

Em 2005, aos 93 anos, Apolonio morreu. Mas só depois de estudar psicologia.

No livro, infelizmente, ele omitiu uma história que me contou em nossa breve conversa e que ajuda a compreensão de seu interesse pelos sentimentos. Um belo domingo de manhã sob a ditadura, ele chega  a um aparelho mantido pelo PCBR em Jacarepaguá e encontra um grupo de jovens militantes empenhadíssimos em fazer a faxina e lavar a casa. Na condição de secretário-geral do partido, deu a ordem: “Deixem isso tudo. Vão para a praia. Divirtam-se. É uma ordem!”

Ah, meu exemplar não está autografado. Ele me deu de presente, mas disse que só autografaria à noite, durante a festa de lançamento, a qual eu, perfeito idiota, não fui.

saraiva


Viewing all articles
Browse latest Browse all 2

Latest Images





Latest Images